Sizígia: a complementaridade contida num par de opostos
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Sizígia – a complementaridade contida num par de opostos
Góticas, simbolistas, fantásticas, recontos, ficção mitológica, nada disso e tudo isso ao
mesmo tempo, as histórias narradas nesta miscelânea fluem numa tradição literária
inventada e elusiva, que não precisa nem quer se enquadrar num cânone exclusivo.
Entendo, contudo, que se trata de uma tradição imaginativa de que andamos muito
precisados, nós os hiperracionais que nunca fomos tão parasitados pela irracionalidade
que pensamos ter excluído até mesmo de nossas religiões anêmicas e esclerosadas.
Talvez essa tradição imaginativa ajude a nos curar de tanta fantasia de realidade,
trocando um pouco as lentes, ainda que só para descansar nossos olhos nublados pela
objetividade cotidiana.
*
Escrever estes contos foi, para mim, durante quase 20 anos, uma maneira de processar
eventos em experiências, como me sugeriu o analista junguiano James Hillman. Um
modo consciente e deliberado de fazer-alma, ao qual ele também me convidou. Talvez
essa seja uma categoria interessante: uma literatura do fazer-alma, que nos auxilie a
processar, não em alguma tela externa, mas na subjetividade, e criativamente, nossas
fantasias mais íntimas, nossos sonhos noturnos e devaneios diurnos, as histórias dos
outros que confundimos com a nossa, nossas emoções deixadas a si mesmas, num
mundo em que só a razão salva. Os meus, os nossos complexos aparecem
personificados nas histórias que narro, como deuses de um panteão psíquico
encarnados em personagens, manifestos nos atos que estes praticam. Todos são eu e
eu é eles, como diria Rimbaud. E Fernando Pessoa, mas sem o erro deliberado de
concordância. Aliás só me aproxima desses dois a pluralidade humana constitutiva que
todos, sem exceção, partilhamos.
*
Meu primeiro conto mistura um relato de Ovídio em “O Asno de Ouro” (uma história
dentro da história) com outro, de Diotima, a quem Sócrates menciona no “Banquete”,
dá voz e chama de sua mestra. Os dois têm Eros como protagonista, o deus que faz a
paixão amorosa irromper e assim, segundo o mitólogo Junito Brandão, “dilacera os
membros e transtorna o juízo dos deuses e dos homens”. Me apropriei dessas histórias
(ambas com valor de mito) com aquela liberdade infantil de leitora, a fim de contar
uma terceira, que se passa, como todo mito, nos dias atuais. Ainda bem que os mitos
clássicos não viraram dogmas e doutrinas, ou eu seria acusada de heresia. Em
“MITOLOGEMA”, revelo a quem ainda não sabia que Eros teve duas mães opostas-
complementares: Afrodite, deusa do Amor e da Beleza, e Pênia, a Penúria. E dois pais
um pouco semelhantes: Ares, o deus da Guerra e da Violência, e Poros, o Recurso, a
quem reuni num mesmo personagem bestial e poderoso – o Minotauro. Essa filiação
quádrupla fez de Eros o eterno desejante, o mais poderoso entre os carentes, aquele
que tem tudo e nada ao mesmo tempo, cujas flechas detêm um poder ambíguo de
curar ou ferir, quase sempre as duas coisas. Como Eros irá reunir as duas histórias e
criar uma terceira, é disso que trata o conto.
*
Contos de fadas são narrativas vivas, analogias percorridas de energia e cheias de
sentido, que se transformam no tempo e nos socorrem mais do que manuais de
autoajuda. Estão carregadas de elementos mitológicos e compartilham com o mito o
frescor, a abertura e a força da oralidade original. “UMA PILHA DE CINZAS E
ESTILHAÇOS DE CRISTAL”, “O QUINHÃO RECUSADO” e “LICANTROPIA” são minhas
versões para três dessas velhas histórias eternas: a Gata Borralheira, a Bela
Adormecida e Chapeuzinho Vermelho. Desafio você, minha leitora, meu leitor, a não
reconhecer alguma experiência atual, seja pessoal e/ou coletiva, nessas narrativas que
falam de dissociação e dos perigos do desejo. Há quem queira higienizar os contos de
fadas, expurgar vilões, bruxas, monstros, provações, excluir deles o polo negativo…
Recicladas do lixo dos neopuritanismos típicos de nosso espírito de época, as sombras
dos contos de fadas continuam a fertilizar a imaginação e produzir resiliência,
reforçando nosso sistema imune psíquico desde a infância. Minhas versões, embora se
dirijam a adultos, mantêm os mesmos elementos simbólicos. Sem polo negativo não
há tensão e sem tensão, a trama não se sustenta: nem a da narrativa, nem a da vida.
Esses três contos também convidam você, leitora, leitor, a voltar à infância e, nela, ao
seu conto de fadas predileto, para refletir sobre os motivos profundos dessa
predileção.
*
Por fim, todos os livros falam de outros livros, como pontificou J.L. Borges, e o meu
não escapa à regra do sumo-bibliotecário, como vimos até aqui. Mas me pergunto até
hoje de onde veio e aonde foi parar o velhíssimo livro de capa dura azul, onde descobri
uma deliciosa coletânea de contos fantásticos. Aos 15 anos, o mais que démodé
Théophile Gauthier alimentou minha imaginação com todo tipo de exagero simbolista.
Perdido o livro, minha alma reteve as histórias. De todas elas, “Avatar”, com seu
titanismo cada vez mais realista, vivia me pedindo para ser recontada. Em novos
termos, para um mundo dolorosamente parecido. A questão, eterna e nascida ontem,
é: como reunir meu Ocidente ao meu Oriente? Em ‘SIZÍGIA”, uma velha de 90 anos
quase responde.
Experimente, cara leitora, prezado leitor, e depois me conte, aqui no site, o que achou.
Especificação: Sizígia: a complementaridade contida num par de opostos
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