Yorick:
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Yorick –
— Yorick é um personagem silencioso criado por William Shakespeare: o crânio que Hamlet
por fim segura para, face a face, falar da vida e da morte. O poeta, ensaísta e diplomata Felipe
Fortuna investiga esse personagem e, num conjunto de 50 poemas, apresenta-o em vida
(“Yorick vigia as almas”) e deixa Yorick se apresentar. O autor também imagina de que modo o
príncipe da Dinamarca, quando criança, se divertia com o bobo da corte, “meu mestre da
bagunça”. Há uma relação entre Yorick e o poder, uma vez que ele circula no meio de nobres,
cardeais, dignitários e celebridades da época. Em seu décimo primeiro livro de poesia, o autor
não esquece que Yorick teve amigos e inimigos, e esses últimos gritam o nome dele no escuro.
Yorick sonha, fica doente e morre – e sua morte toca uma sensibilidade diferente em cada
pessoa, do coveiro ao rei. Ninguém era indiferente a Yorick. Talvez ninguém quisesse sequer
ser parecido com Yorick.
Se existe uma noção de sabedoria em Shakespeare, ela definitivamente não está associada a livros ou bibliotecas, mas a cabeças e línguas de marginalizados e outsiders – mulheres, pessoas do povo, bobos. Esse último grupo tem célebres representantes em todos os gêneros dramáticos que o Bardo praticou – tragédias, comédias, peças históricas, peças-romance – e distribui-se em um diapasão que compreende desde os palhaços mais simplórios aos mais sofisticados jesters e fools.
Na elite dos bobos de Shakespeare, destaco o inesquecível Bobo do Rei Lear, sem nome próprio; Feste, o “corruptor de palavras” de Noite de Reis; Tersites, o bobo ácido de Troilo e Créssida; Touchstone e Lavatch, os antirromânticos de, respectivamente, Como quiserem e Bom é o que acaba bem. Yorick, o bobo da corte dinamarquesa de Hamlet, estaria aqui, não fosse sua tamanha singularidade: personagem mudo, resto de esqueleto, lampejo feliz na memória de um Príncipe herdeiro que em breve morrerá. Yorick é um caso à parte.
Hamlet reencontra “Yorick” no quinto ato de sua tragédia, no cemitério. Os coveiros, ligeiramente embriagados, cavam a sepultura que receberá o corpo de Ofélia, e vão jogando para o alto ossos exumados e poeira. Hamlet assiste a tudo atento, intrigado com a falta de decoro dos profissionais, que cantam e contam piadas enquanto trabalham. Ao saber que o crânio de Yorick era um dos destroços arremessados pelos coveiros para fora da terra, Hamlet profere uma fala carregada de afeto sobre seu companheiro de brinquedos, o rapaz de infinita graça e espantosa fantasia, como se naquele momento exato pudesse não apenas reencontrar o velho amigo mas compreender algo que o atormentara a peça toda: o que é, exatamente, a morte?
Felipe Fortuna apropria-se desse momento tão crucial da tragédia do Príncipe da Dinamarca e emula todo o circuito da ação no cemitério. Desenterra Yorick, observa-o, transforma-o em dispositivo, personagem e tema. Constrói, em torno do crânio mais famoso da literatura, um mosaico de falas, repercutindo algo do perspectivismo do teatro shakespeariano. Nas dez seções do livro, há poemas enunciados por vozes diversas: a do Poeta, a do Rei, a do Príncipe, a do próprio personagem título. Nessa polifonia, vislumbramos um enredo relatando a vida, os embates, o adoecimento e a morte de Yorick.
O tom dos poemas é perpassado por um realismo doce-amargo, contido, em que lirismo, factualidade e olhar crítico se mesclam. Em linguagem que na maior parte do tempo é direta e comunicativa, rememora-se o talento exuberante do bobo, sem se deixar de lhe cantar o réquiem. Os mistérios e enigmas da poesia, sempre necessários, ficam registrados nos nomes esdrúxulos dos Bobos pesquisados por Fortuna, bem como em suspensões e pausas estratégicas, aqui e ali, nos poemas. O conjunto de escolhas verbais faz-me pensar em um eco muito inteligente do contexto em que Yorick existe no mundo de Shakespeare e de Hamlet: ele é e não é, ele é osso e memória, ele é texto na boca de outrem.
Assim como o crânio de Yorick emerge do fundo do pó, esse Yorick de Felipe Fortuna emergiu de um momento sombrio, a pandemia de Covid-19, e de uma prospecção, feita pelo poeta, de todas as peças shakespearianas. Um crânio desentranhado da terra; um personagem – e um livro com seu nome – desentranhados de um confinamento compulsório. Interessante e sugestiva coincidência: ali, onde não parece, também há vida.
Em um dos poemas da seção “O poeta apresenta Yorick”, lemos que “Yorick era certeiro. Suas palavras / duraram para sempre”. Se Shakespeare não nos dá a escutar um balbucio sequer de seu famosíssimo bobo, que ele continue a provocar poetas a fazê-lo e a nos contar a respeito.
Especificação: Yorick:
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